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A obscena senhora



A arte tem um poder mágico sobre os nossos corações. O teatro, em especial, escancara diante de nós aquilo que antes era só um sussurro diário nos ouvidos. Na semana passada, assisti à peça “A obscena senhora H - Paixão e Obra de Hilda Hilst”, um monólogo dramático que retrata um pouco das reflexões de Hilda Hilst, enigmática voz feminina na poesia e na filosofia brasileira. Esse texto é uma tentativa de traduzir em palavra as impressões que o teatro despertou em mim:


Olhar vago e profundo. A mulher procurava a direção da luz; o objeto iluminado; e o mais difícil: o significado dele. Ou melhor, procurava o significado de tudo o que a rodeava. Procurava, principalmente, o significado de sua própria existência.


Hilda Hilst, enfurecida, gritava aos modernos: "a matéria não é tudo". A filósofa preocupava-se com o que ia além do visível, com o que a transcendia e dava sentido ao Universo ao seu redor. Sabia que Deus existia - afinal, crescera em um convento-, mas não conseguia compreendê-lo. Queria que Deus a fizesse compreender o mundo, mas não compreendia o próprio Deus... ou a própria representação que dEle fora feita por aí.


"Deus, você me compreende?", gritava ela, com os olhos arregalados, enquanto fitava os céus. Na verdade, talvez Hilda não o compreendesse porque não se sentia compreendida. Mas não se sentia compreendida por quem? Por Deus? Ou por nós?


Hilda vivia jogada em uma escada suja. "Louca", cuspiam os vizinhos. "Promíscua, obscena", acusavam os religiosos. O abandono era algo tão vívido que a filósofa chamava a si mesma de "Senhora D" - D de desolada, desesperada, desamparada.


Só se sentia amada por Wilson. Ele era um jovem de aproximadamente 30 anos, que adorava ir para cama com ela. E ela também adorava ir para cama com ele. Mas era só isso. Wilson não entendia - ou melhor, tinha repulsa- do anseio de Hilda por compreender o Divino.


"Era gostoso se sentir desejada por alguém, mas o que eu preciso mesmo é de alimento espiritual", desabafava Hilda aos ventos. Mas ninguém, a não ser o próprio Deus, a ouvia.


Com o passar dos anos, o desamor foi destruindo a poeta aos poucos. Um dia, Wilson a agrediu e quase a matou. Hilda chamou a polícia, desesperada. Não sabia para onde ir; não sabia o que pensar; e não sabia como agora iria se distrair. Quando as ilusões são destruídas, a Verdade, em um primeiro momento, parece assustadora.


A poeta enxergava o seu anseio pelo Divino, mas não encontrava respostas às suas dúvidas honestas. Mais do que isso: não se sentia cuidada e acolhida... e como compreender algo sem antes ser compreendida? Então buscava respostas e cuidados em outro lugar- principalmente no jovem Wilson, no qual depositou tanta expectativa, mas se antes o abandono era discreto, hoje esse se tornara absoluto.


Hilda surtou. Mostrou-nos as suas intimidades em um gesto de revolta. Seus gestos impactavam: bradavam por socorro. A poeta então desce do palco. Passos lentos; segundos eternos. Olha nos olhos de cada um de nós, de forma penetrante, e questiona:


“O que é obsceno?"


Obscenidade é o corpo despido? É o sexo desenfreado? É a embriaguez? A religiosidade, muitas vezes, ofusca a nossa visão e só nos deixa enxergar até aí.


Obscenidade é a nossa hipocrisia.


É a hipocrisia de enxergarmos o comportamento do outro como "imoral" em nome do Amor, enquanto não amamos esse outro. Enquanto não amamos nem mesmo o Amor- pois é impossível amá-lo e não progredirmos em verdade, misericórdia e coragem.


Obscenidade é enxergar humanos sujos deitados nas calçadas sem ter o que comer; obscenidade é falarmos tantas coisas belas mas não nos esforçarmos para concretizá-las; obscenidade é o quanto criticamos o outro mas negligenciamos os nossos erros. Tudo isso é obsceno. Mas ninguém fala disso... Ninguém fala porque nos toca diretamente, porque nos chama para sairmos da zona de conforto.


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Frente a esse texto, carregue algo com você: cuide mais das pessoas; e deixe que elas cuidem de você. Os nossos próprios desejos e preocupações muitas vezes nos cegam, mas precisamos tentar enxergar diferente: como na história de Hilda, tudo começa quando buscamos a direção da luz, o objeto iluminado e o sentido dele.


Veja as suas próprias obscenidades (diárias) e saia da zona de conforto.


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