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"Sem-teto"; assim que vinha vivendo


Carros parados no trânsito, elevadores lotados e silenciosos, filas de bancos, de supermercados, de lojas, rotinas cheias de ações vazias. Temos ocupado nosso tempo com o que é superficial, e isso faz aquilo que é verdadeiro parecer utópico.

Achei um baú de escritos meus durante a infância. "Ser astronauta, salvar vidas, escalar a montanha mais alta do mundo", o verbo ser acompanhado por grandes sonhos abafados por um crescimento que só nos diminuiu. Quando eu contava o que queria, muitos adultos me falavam que eu desistiria, mas eu não acreditava; comigo seria diferente! Tenho certeza que a criança que fui esperava muito mais de mim do que o que me tornei.

Peguei um jornal que estampava na página principal, mais uma morte, uma fraude, um mal. Indignada, só aumentava minha tendência à desacreditar. Afinal, como ser luz em uma escuridão total? Um dia sai de casa, mais uma vez atrasada para uma reunião importante com executivos dispostos a defenderem seus interesses pessoais e nada mais. No meio do caminho algo inesperadamente chamou minha atenção: um menino pedindo dinheiro no sinal. Lembrei que o que eu mais queria era ter um orfanato, sempre gostei de crianças. Meu objetivo era ter uma família grande e formar uma maior ainda, na qual daria um lar para quem não tinha e mudaria a vida de quem ainda estava a formando. Durante muito tempo, aquilo não me incomodou. Eu tinha me tornado cega à realidade a qual me submeti, mas naquele dia foi diferente. O olhar brilhante daquele menino que batia em minha janela implorando por alguns trocados estampava uma mistura de esperança e desapontamento. A ambição por dinheiro, conforto e solidez tinham me alcançado mas, por impulso, fiz algo que mudou o curso da minha vida para sempre.

Abri a janela e o convidei para um café, quis o alimentar, conhecer sua história, suas aflições. Percebi, então, que vivia uma vida muito mais miserável do que a dele. Quando somos crianças somos mais infinitos. As circunstâncias e as preocupações, se não forem enfrentadas com sabedoria, farão de nós escravos delas e vidas sem propósitos. Não importa o quanto conquistemos, nada nos satisfará. Não por que nos acostumamos com a abundância, mas sim por não ser o que nascemos para ser. Alguém pode viajar o mundo todo, obter toda riqueza, toda fama, mas nada disso é capaz de nos preencher; tudo que fazemos de baixo do Sol é vaidade. Não fomos criados para reproduzir a mesma rotina monótona e nem para viver algo diferente a cada dia se nada disso tocar quem somos e quem podemos ser. O que importa não são os fatos ou ações, mas o que eles geram em nós. Nossas atitudes não servem para só completar uma série de horas impostas; fomos criados para edificar, e se apenas vivemos, seja a mil ou a cem, de nada valerá.

Percebi que estava me tornando cada vez mais sem valores reais. O mal da cidade grande: ninguém mais acredita ser importante, somos como formigas em um zoológico. Os animais maiores tem destaque, nós estamos lá, lutando para não sermos pisoteados, cumprindo nossas funções sem interferir no curso da vida alheia. Dar um bom dia é algo raro, afinal, as respostas só chegam do mundo virtual. Perguntar se está tudo bem é quase retórico, nem mesmo sabemos que não estamos bem, não há tempo para contemplar os próprios sentimentos. Os meus estavam escondidos até então. A tarde com o menino havia reascendido a chama que sempre existiu em mim. A chama esquecida de um sonho que costumava me incendiar. A frieza do meio externo não me deixava sentir aquilo que movia meu ser. A partir daquela tarde, porém, eu vi quem eu era e quem eu nasci para ser. Vi que existia um propósito maior que a minha própria vida, afinal, a vida em si é apenas um sopro e,se não vivermos por algo maior, padeceremos.

Perguntei quais eram os sonhos do menino, afinal, viver na rua não era razão pra desistir de viver algo grandioso ou, pelo menos, não deveria na mente de uma criança. Ele ainda acreditava que sua condição não era empecilho para que um dia ele se tornasse um engenheiro. Queria construir casas enormes, inclusive uma para ele viver (daquelas com bebedouro de coca cola e tobogã, dizia ele empolgado). Do lado de fora é onde habita o medo e a incerteza, e ele queria criar casas, para que aqueles que não tivessem uma pudessem entrar em um ambiente de segurança. Percebi que, apesar de ter uma casa física, eu estava vivendo mais do lado de fora que ele. Não estava mais vivendo conforme meu interior; meu verdadeiro lar estava trancado, era como se eu fosse estrangeira em mim mesma.

Decidi correr atrás do orfanato e salvar vidas por meio dele. Quando contei meus planos de largar meu emprego todos afirmaram que eu estava louca. Sacrificar uma vida de luxos e confortos por algo arriscado? Depois de tanto tempo? Nenhum deles entendia, mas eu não julgava, por muito tempo fui assim, acomodada. Quando eles diziam isso eu sorria, um pouco triste por vê-los como eu era antes, mas sem desanimar, afinal, quando se vive para um propósito além da vida, nada em vida pode te desviar dele. Sei que a partir da minha iniciativa muitos sonhos poderiam ser reascendidos também. A luz que eu acreditava ser inalcançável quando lia o noticiário brilhou diante dos meus próprios olhos. Não havia motivo para temer a escuridão, ela não era poderosa o suficiente para apagar a luz porque ela nada mais era do que a falta de luz. O que deveríamos temer é continuar na escuridão, continuar caminhando em um beco sem saída. Eu descobri que poderia ser a luz, e a partir daquele momento, nunca mais quis ser outra coisa.


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