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Quando a chama da liberdade se apaga

Uma vela ao centro da mesa. Era uma noite escura e gélida. Lá estava um casal de jovens, carregando por dentro um amor sincero, e por fora uma confusão. Micaela tinha uma aparência delicada, o rosado de suas bochechas e seu sorriso terno fazia dela uma mulher calma e cheia de carisma. Curtia filosofia e artes, e suas palavras nunca eram vãs ou rasas. Ela e Heitor tinham em comum a vontade de viver. A vontade de viver juntos, também. Mas viver para eles tinha significados diferentes. Heitor tinha traços rudes, personalidade forte, e uma envolvente descontração. Naquela noite, já bêbado, chamou o garçom com um sorriso largo e desengonçado:

-Mais um copo de whisky, por favor.

-Para que mais, Heitor?

-Eu quero! Não posso, é?!

Micaela suspirou e olhou para baixo... Levantou então o olhar e disse, preocupada:

-Você não consegue mais se controlar!

-O fogo da vela está a iluminar a chama do olhar mais encantador do mundo! E você me pede pra ter controle? – Disse Heitor em um tom de voz exageradamente alto, atraindo olhares. Ele riu, se aproximou e beijou a namorada. Ela se afastou, invadida pelo incômodo:

- Quando você fica assim, além da conta, estraga a noite... Já pedi para se controlar, você ta é escravo disso!

- Que escravo nada... Você parece querer é que eu me torne o seu escravo, só pode! Respeite a minha liberdade, Micaela!

- E o que é liberdade, hein, Heitor?! – disse ela, em um tom de voz firme e um olhar penetrante.

- Ihh... já vi que vai incorporar a filósofa! Liberdade é poder fazer o que quiser, sem nada ficar limitando!

- Nada?! - ela riu, com um leve tom de deboche. Ia mesmo começar a expressar seus devaneios. - Pensa nas influências sociais externas, na família e na região que você nasceu e vive, no seu DNA específico, nas suas limitações físicas, psíquicas, financeiras... Quando é que você está fazendo o que quer sem nenhuma limitação?

- Não tenta fingir que não entendeu! Aonde você quer chegar?

- Para que serve a liberdade? Responde, vai!

- Sei la... Para eu poder me satisfazer em paz!

- Heitor, eu sei que você quer beber mais agora. E queria ontem e vai querer amanhã, e depois vai vir, triste e decepcionado, implorando a minha compreensão. Você se sente livre quando satisfaz seu desejo e bebe, ou quando consegue dizer não ao seu vício e não beber?

-Quando... quando bebo!

- Mas você teria uma felicidade mais sólida e constante se pudesse dizer não para a bebida quando não fosse conveniente, não é?

- Ah, sim... claro...

- Você quer, então, ter paz para fazer algo que te tira a paz? – Heitor ficou em silêncio por um instante. Pensou que, se estivesse sóbrio, poderia dar uma resposta que acabaria com todo esse questionário que tanto o incomodava.

- E quem é que decide o que me tira a paz? Como eu vou saber o que me tira a paz? Ah, quer saber, você é que está tirando a minha paz, agora!

Micaela olhou fundo nos olhos dele. Magoada, cuspiu as palavras:

- “Liberdade". É uma bela palavra, não? Pena que seu significado tem se esvaziado, Heitor. Você quer fazer o que quiser, mas não reconhece que nem tudo o que quer te conduz à felicidade. Limitações podem ser encaradas como coisas ruins, mas muitas vezes elas conduzem muito mais à paz do que essa falsa liberdade. Você precisa é se livrar de todo esse seu egoísmo, e dessa escravidão aí, que te faz preferir sempre algo que altere a sua forma de agir e pensar. Livre disso é que você precisa ser, e não livre para se destruir aos poucos! – A mulher, que geralmente mantinha a calma, percebeu seu coração acelerado e cheio de revolta. Suspirou e franziu a testa. Heitor, incomodado e impulsivo, provocou:

- Vamos lá, ó sábia mulher. – sua agradável descontração se transformava, às vezes, em um deboche profundamente provocativo- O que é liberdade, então? E se fazer o que quiser não é ser livre, é ser o que?

- No seu caso, é ser escravo! Você precisa entender que há uma grande diferença entre libertinagem e liberdade. Libertinagem é a entrega irrestrita aos prazeres e desejos imediatos, essa aí é que você têm experimentado. Liberdade, Heitor, é viver conforme você foi feito para viver. Uma borboleta, por exemplo, não foi criada para voar? Ela é livre quando voa, e nenhuma anormalidade a impede de voar. Nós fomos criados para sermos saudáveis, experimentarmos de uma felicidade profunda e não ilusória, para amarmos sinceramente...

- Ué! Eu sou livre também, então! Olha para mim! Você acha mesmo que eu sou infeliz? – ele piscou, procurando aliviar a tensão de Micaela.

- Eu não tenho que achar nada, posso ver apenas como você se expressa. Só me pergunto se um dia você vai aprender a encontrar a paz em coisas que valem a pena... Ou pelo menos aprender que precisa tentar. – Ela apagou a vela. – Um dia, com um simples sopro, seu corpo vai sumir desse mundo. Tenho me questionado se a chama que queima em você é capaz de esquentar a alma de alguém. Percebi que você tem esfriado a minha a cada anoitecer...!

Ela se virou e foi andando para a casa. E ficou Heitor, bêbado, no bar em meio à escuridão da madrugada. Começou a refletir, mas a cabeça doía e a seriedade se esvaía. Começou a chorar como um bebê. Micaela tinha apagado a vela e, agora, sozinho na vastidão do negro que cobrias os céus, ele se via parte do nada. E precisava desesperadamente que algo o ascendesse.


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