A travesti na sociedade e o cristianismo
Entra em cena uma travesti deslumbrante. Em cima do salto, se sentia confortável com a forma a qual se apresentava. Aquele aroma de espontaneidade era agradável de se ver. Mesmo assim, eu sentia que algo impedia a plenitude daquele bem estar. O ar, ao menos para mim, estava carregado com algo. Com uma história intensa e bruta por trás daquilo tudo, talvez. Ou com um incômodo com aquela figura que ainda mora em muitos olhares e, assim, faz com que a própria figura ainda se incomode um pouco consigo mesma.
Ela desfilava ao som de uma melodia, como se a noite guardasse nela a luz do dia. Lentamente, portanto, as luzes foram perdendo a intensidade, inclusive a da travesti, que ia sendo sutilmente tomada por uma expressão cada vez mais vazia... A música foi se tornando mais forte e o ambiente mais tenso.
Bruscamente, ela pega um creme e esfrega em seu rosto. Esfrega com uma intensidade perturbante. Esfrega sem parar, sem respirar, sem diminuir a intensidade. Esfrega até tirar toda a maquiagem. Um tempo depois, tira o vestido e fica quase nu. Sua aparência é inteiramente nova e masculina, mas sua expressão é triste, misteriosa. Meus olhos não se desgrudavam daquela cena que, sem uma palavra sequer, dizia algo tão profundo e severo.
Naquele momento, pude perceber verdadeiramente quão absurda é a lógica que permeia a consciência de boa parte de nossa sociedade.
Uma das dádivas do ser humano é, justamente, poder "ser" algo. Algo único, sincero, algo criativo. A espontaneidade, que consiste na possibilidade de sermos exatamente o que temos vontade de ser, é um dos maiores tesouros que nos foram concedidos. Mas, quando se dita o que o humano é, o "ser" fica submetido, em menor ou maior grau, à esse "humano". E é ai que a espontaneidade encontra seu túmulo, e nasce a mais profunda inquietude e angústia: de não descobrir, ou de não se sentir em paz com quem é.
Era como se a travesti viesse com um sorriso e, em seu processo de auto-descoberta, dissesse ao mundo: "me sinto bem assim, e é assim que eu quero ser." E então, o mundo inteiro a olhasse com desprezo e gritasse:"você não pode ser assim, é repugnante!" E se, ouvindo isso, e sabendo que suas vontades mais íntimas dizem algo profundamente verdadeiro sobre si, ela questionasse: "mas por que? O que há de errado comigo?" E esse seria o pior momento. O momento em que o mundo vira as costas para ela. O momento em que essa pergunta começa a habita-la de tal forma que se sentir em paz com sua identidade começa a ser cada vez mais desafiante.
Todos que sentem que seu ser está sendo brutalmente ou sutilmente condenado, castrado ou até eliminado, são invadidos por um sentimento de angústia e um medo discreto, mas penetrante, que acabam por ir destruindo a tal da espontaneidade. Diante de formas tão plurais de ver e de se experimentar o mundo, me pergunto por que será que os sujeitos insistem em usar as diferentes práticas e opniões para os separarem, em vez de usar os sentimentos tão comuns para os unirem. As pessoas simplesmente não percebem que compreender o outro é, muitas vezes, compreender a si mesmo.
Para quem enxerga esse pensamento de que se deve aceitar o outro um perigo, ou uma ameaça ao Evangelho de Deus, eu respeito a forma a qual você enxerga esse tipo de discurso. Sei que ele é relativamente "novo" na sociedade e que, por muito tempo, as pessoas lidavam com essas coisas de uma forma completamente diferente.
A grande questão é que Jesus só repreende alguma atitude porque ama quem a pratica. Além disso, ele não vira as costas depois de nos repreender. Se quem impulsionasse a travesti a tirar a sua maquiagem fosse Jesus, não veríamos gestos desesperados e desenfreados. Inúmeras são as passagens bíblicas que demonstram o amor, o cuidado, a atenção e o carinho especial que Jesus tinha por aqueles que a sociedade marginalizava. Ao mesmo tempo, muitas outras passagens atestam o quanto Ele discordava dos fariseus, que colocavam o cumprimento da lei acima do amor. Por isso, eu questiono: em quem as pessoas tem se inspirado ao se colocar contra o respeito e a inclusão? Com certeza, não em Cristo.
"Quem ama, repreende as más ações do outro." Não teria nada de errado com esses discursos se pudéssemos enxergar o amor (que é uma ação que implica o respeito, a compreensão, a humildade e a atenção) de forma tão evidente quanto a repreensão. Pecar quer dizer errar o alvo. Não adianta falar para alguém que ela está errando o alvo, se esse alvo não é expresso como deveria: como um alvo que dá vida e amor, sem ser ele completamente abstrato ou ideológico.
O amor vem primeiro, e o que Deus, e não as pessoas, julgar ser necessário repreender ou abandonar vem não só depois, como no momento e no ritmo certo. A maquiagem que precisa ser tirada com urgência é aquela que esconde a hipocrisia e a incompreensão. Espero que esse texto sirva como demaquilante para alguém.